quinta-feira, maio 02, 2024

Onde Duas Ruas se Encontram

     Não valia nada. Pobre, sem posses além de sujo e sem rumo. Não foi falência, sempre foi desprovido de bens. Na boca restava apenas um gosto de pó e uma textura de lama, a comida nunca vinha limpa e muito menos saborosa. Vagava errante, sem rumo nem rio, uma mão estendida sequer. Levava consigo apenas barro, pó e silencio. A muito tinha deixado o sentido das coisas na beira da estrada.

    Encontrou uma casa. Era simples, de aspecto aconchegante e tranquila, mas sem nenhuma extravagância. Vinha de lá um cheiro de flores e de fruta e um som, um som que parecia ao mesmo tempo canto, prece e o barulho das águas em queda. Chegando mais perto viu o velho. Todo melado de argila e barro, o velho trabalhava esculpindo o material negro avermelhado. Naqueles olhos, arrodeados de profundas rugas, ele viu a idade do tempo e a criança que era a terra e tudo. As mãos não eram ágeis, e nem precisavam. Já haviam superado o tempo a muito. Cuidadosamente amassava a lama, alisando carinhosamente dando contorno ao que, no final, se mostrava humano. Tão humano quanto as mãos santas que o moldavam. Distraído, ficou ali olhando o trabalho do velho.

    Muitas eram as visitas que o velho recebia, mas não duravam muito. E a cada dia que o moribundo passava ali, observando o velho, via que o trabalho era importante. As visitas eram todas de gente respeitável. Reis, santas, guerreiros de todas as vitórias. Mulheres e homens de tanto poder. Mas nunca ficavam muito tempo. Quatro dias, oito dias e logo partiam. Vinham com presentes, verdadeiras farturas oferecidas. Tudo para agradar o velho, escutar um ou outro conselho e, sobretudo, admirar suas obras e o incansável trabalho. Mas nada aprendiam daquela arte.

    Durante dezesseis anos ele observou o velho trabalhar na argila. Foram anos observando-o moldar cada nariz, cada veia, artéria e cílios. Começou a entender como o velho moldava a unha, a língua e os ossos de cada humano. Aprendeu tudo. Aprendeu tudo, sem nunca perguntar. Só observava, absorvia, obedecia e executava. Trabalhou muito e compreendeu tudo.

    O velho nunca precisou realmente de ajuda na confecção dos humanos, toda ajuda que pedia era, na verdade, parte do ensinamento daquela arte. Mas uma coisa o incomodava. Não tinha tempo de receber tanta visita, arrecadar tantas oferendas e presentes. As visitas eram muitas e o trabalho só crescia. Então o velho o chamou, disse que sua ajuda se fazia necessária em outro lugar e era de toda a importância. Seu trabalho agora era receber todas as oferendas que traziam dos quatro cantos do mundo e ninguém podia visitar o velho sem trazer os devidos presentes. Foi dado um ogó, que era como um tacape, para defender e receber quem chegava. Quem passava, tinha de passar pela permissão dele. 

    Ele recebia de tudo e de cada grão que recebia, repassava para velho.  De tão bom seu trabalho, caprichoso e incansável, o velho disse que quem viesse a sua casa teria também de pagar certa quantia ao guardião da encruzilhada. Ele trabalhava demais e de melhor qualidade era seu trabalho. Agora ele valia muito. Fez ali seu lar, seu trabalho, sua razão. Fez fortuna e fama. Ninguém pode mais passar pela encruzilhada sem pagar alguma coisa a Exu.

15 de março de 2021


Yoruba - William Fagg (1959)


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