quinta-feira, dezembro 24, 2020

Eu estou sem
Mesmo nunca sentindo que tinha
Transbordou uma falta

Não é uma vazio
já que preenche tanto

Tinha algo aqui
eu lembro
Mas agora faz falta
e não há uma lembrança.

Tinha algo aqui
sei até apontar onde
mas não sei dizer o que
nem quando
sumiu.

sábado, dezembro 19, 2020

Fecharam os olhos
todos os faróis à minha volta

e há continentes terríveis.

sábado, dezembro 05, 2020

Salão

Perdi o andar vertical
Sigo deslizando entre fileiras
Riscando um horizonte infindável
entre colunas tirânicas
de pesos infinitos
que sustentam
um firmamento
já vão 

Um vão que se forma
de ponto a outro
na vastidão de um salão
também infinito
com um fino espelho d'água
a cobrir tudo

Úmido,
deslizo

Sorrateiro de mim e de tudo
Mas não em vão
nem realmente só
Nem completamente triste

Mas triste, sim
muito triste
Mas não só
triste
Nem só. 

sábado, outubro 31, 2020

A única flor que realmente há beleza em seu arrancar, é o dente-te-leão. Que não denota morte, mas fertilidade e vida. É o momento singular onde o sopro do homem, também é o sopro da vida. 

domingo, agosto 30, 2020

Desde os meus oito anos resolvi guardar todas as pedras que encontrava em meus sapatos. 
Guardava-as dentro de um jarrinho de vidro. 
Tinha planos do que fazer, no futuro, quando o pote estivesse cheio e tivesse que trocá-lo. 
Hoje, com meus quase sessenta anos, não somei mais que quinze pedrinhas minúsculas.
De fato, aos vinte sete anos, troquei o recipiente. O antigo era grande demais. Hoje as pedrinhas andam comigo no bolso, num potinho bem pequeno. 
O que seria de mim. 
O que seria de mim se não as tivesse colecionado todas? 
Com carinho. 
Com dedicação.

domingo, julho 05, 2020

O amor não é raro

O amor não é raro
Raros são os peitos abertos
encharcados de inflamável paixão

O amor não é raro
Raros são os olhos abertos
a procurar qualquer sutil faísca de ternura

O amor não é raro
Raro é o tato aberto, sensível, 
a pele propositalmente arrancada
para sentir tudo que há pra sentir
em tudo que há

O amor não é raro
Raro é o destemor

Raro é a mão que,
aberta e sem medo,
entrega uma alma frágil
para ser tocada. 

O amor
não
é
raro.

terça-feira, junho 23, 2020

Nada é tão fácil

Nada é tão fácil
Segurar um pássaro nas mãos requer destreza
Um tanto de compassividade
e leveza

Nada é tão fácil
Segurar as mãos num pássaro requer destreza
Um tanto de compassividade
e leveza

Nada é tão fácil
Segurar leveza nas mãos requer um pássaro
Um tanto de compassividade
e destreza

Nada é tão pássaro
Segurar o fácil nas mãos requer um tanto.

Fábrica de Tijolos

Eu tenho uma amiga
e ela tem uma fábrica de tijolos.
Vi no decorrer dos anos ela construir tanto, arranha céus
fez moradias, igrejas, capelas e shopping centers.

Ela não notava
era coisa de família
negócios que nos passam despercebidos.
Não notamos.
Mas ela tinha uma fabrica de tijolos
desde cedo
muito cedo.

Desde sempre.

Vi desmoronar várias vezes
casas, castelos, sonhos, capelas e shopping centers
e reergue-los, lindos edifícios.
Sem notar, tinha uma fonte inesgotável de tijolos.

Construía casas
vendavais levavam
outras horas, reformas
às vezes apenas mudança de cidade.

Aos poucos foi percebendo a fornalha
um fogo ardente, enorme e quente
que ao invés de consumir
cozia
criava e construiria.

Tijolo por tijolo, foi percebendo
lentamente
a argamassa, cimento e brita.

Ela tinha uma fábrica de tijolos.
Reconstruía sempre,
Infinita fonte.

Um dia
enquanto ainda percebia
Sentiu arder seu ventre.
Notou-se fornalha ardente
mas ao invés de consumir
paria.

Eu tenho uma amiga
ela é uma fábrica de tijolos.
E oceano.

Andreza Marinho.

domingo, maio 17, 2020

É preciso florescer
Florestar-se
Enraizar.

terça-feira, maio 12, 2020

Orfandade

O que é a morte de um pai ausente?
O que se sente na saída de um pai que nunca esteve?

A morte de um pai ausente
É a ausência da ausência presente
É não ter definitivamente o que nunca tive
A orfandade me vem como desilusão
É a morte de uma esperança
A morte do que nunca vivi

A morte do pai ausente é o afago tépido do Pai Eterno
A morte da possibilidade

Se tive um pai sempre distante
A orfandade me chega preenchendo todas estas lacunas com presença.

Foi a primeira vez que o vi dormir.

Saibam por mim:
Ser órfão não é o mesmo que não ter pai.

Diferente do lugar de pai, enterro hoje um esquife presente e preenchido
Com a esperança de pai.

domingo, abril 19, 2020

Às vezes temos pérolas

Às vezes temos pérolas
que nas mãos de outros, viram lama.
Deixemos, às vezes, nossas pérolas
protegidas
em feias ostras.
Na língua macia das ostras.

domingo, março 01, 2020

Sobre lavar pratos

É tanto prato e panelas e copos e pires e xícara e cadinhos e tampas e potes e garfos e facas e as colheres. Espuma e detergente e esfrega e água e enxague e coloca e equilibra e molha e espuma e o cheiro acre da preguiça.

quinta-feira, fevereiro 13, 2020

é como um navio é como um cais

é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é como um navio é como um cais é

domingo, fevereiro 09, 2020

Percurso de lágrima

Repentinamente uma lágrima escapou
Saiu morna e silenciosa, dificultando minha percepção
Acelerou-se para a liberdade, passou rápido pelo nariz
Tentei, incrédulo com tudo isso, captura-la
Mas só alcancei seu rastro, molhado
Ao chegar no desfiladeiro do maxilar, parou um segundo
Respirou fundo e
pulou.

Aquilo era tudo muito novo
Levantei barreiras intransponíveis
Tão complexas que não conhecia mais os funcionamentos
Complexas, antigas, concretas. Intransponíveis.

Houve silêncio
Um formigamento no rosto
A visão fosca por uma baía salgada
Um desespero, uma alegria velada e esquisita
Meus olhos fumegando
E como um estouro, uma avalanche
um descarrilamento
Um caudal.

O fluxo de água e sal a muito trancafiado
com as porteiras abertas da minha alma
fugiu numa quantidade sem precedentes
O medo da pequena oportunidade se dissipar
fez todas as lágrimas se atropelarem
Queriam sair todas de uma vez
e parece que saiam

Eu via aquilo tudo como que de longe

E num momento, um som
Um guincho, eu acho
Um grito agudo e dissimulado
Eu nem sabia que havia preso
E o primeiro gemido úmido saiu
E não diferente das lágrimas
me fogem todos os ais, de uma vez
mas eram tantos, eram muitos

Eu, meio de longe, não sabia o que era lágrima
ou gemido, ou qualquer tanto de fluidos e sons
desconhecidos, improváveis
Foram escapando. Escapando.

Não contei, mas acho que foram sete dias e sete noites
ou quarenta.

Então, percebi um vazio, um espaço amplo
Salões inexplorados
Um vazio escuro, nunca iluminado
Um espaço novo e tão desconhecido.

E uma leveza.

sexta-feira, janeiro 31, 2020

Cicatriz esquecida

Tenho uma cicatriz no calcanhar esquerdo. Fui um acidente na piscina quando eu era criança. Sofri um bocado. A cicatriz não é pequena e as memórias são muitas. Porem, as vezes passo um ano ou mais sem lembrar dela. Não por esforço. Simplesmente ela está num local que eu não passo muito o olho. As vezes eu acho que eu passo mais de ano sem lembrar disso, acredita? Sim. Mas a cicatriz está lá. Além de todas as memórias também. Vocês entendem? Nada sumiu, nada foi esquecido e eu não me esforço pra não pensar. Está lá e sempre estará.

Um pedreiro meche comigo

Tem uma construção aqui perto de casa.
Toda vez que eu passo
um pedreiro meche comigo.
Já tem uns dois meses.

E ele nem sabe.

Espirito Santo

Estava eu sem fazer nada, vi um grupinho de cinco homens discutindo religião e politica. Uns tios que não entendiam nem de um nem de outro.
— Posso ficar pra ouvir?
Acharam estranho. Eu de boné azul, shortinho azul, tênis azul e meio afeminado:
— Pode.
Quando cheguei, estava um deles, obviamente o que toinha a Bíblia na mão, falando sem parar e claramente se distanciando do ponto que estava sendo debatido momentos antes de eu chegar. Os outros, impacientes, ficavam "Chega logo ao ponto, rapaz!" e "Deixa eu falar!", mas ele não parava. Interpelava-os com "Não posso ler a Palavra?". Foi quando Intervi:
— Sim, mas qual é o ponto? Ainda não entendi o que cada um está defendendo ou acusando.
Os outros tentaram me explicar, mas ele interrompia. Lia versículos com pouca ou nenhuma ligação um com o outro. Eu sempre muito atento ia, aqui e ali, fazendo pequenas correções amigáveis.
O primeiro apertou minha mão, foi embora. Depois o segundo, o terceiro. No final só estava eu. Escutando ele ler aleatoriamente um Isaías, um Romanos. "Você está entendendo, pq da pra ver que você já leu a Bíblia". Na verdade nunca li. Mas sei uma coisa ou outra. No final, ele percebeu que realmente não falava mais nada com nada. Como eu estava ouvindo com atenção e não replicava nada, acho que ele passou a se ouvir e ficou acanhado. Então comentei:
— O senhor viu que ninguém ficou?
— Ah meu filho, não é todos que querem ouvir a Palavra.
— Na verdade é que eu acho que o senhor é meio prolixo, as pessoas acabaram não querendo mais ouvir.
Ele sorriu desconsertado.
— Mas ficou você, não é mesmo? Quem sabe não foi o Espirito Santo que lhe tocou pra me escutar?
— Ou quem sabe o Espirito Santo me tocou pra eu falar isso pro senhor? O senhor precisa articular melhor as palavras. Quando melhor o senhor falar, mais pessoas vão parar pra lhe escutar. Preciso ir agora.
E ele ficou lá. Com um olhar meio perdido.

Amanhotem

Hoje eu queria estar em outro dia.

— Sonhei contigo

— Sonhei contigo
— Hmmmm e foi? Me conta.
— Eu nem lembro direito
— Seiiiii hahaha vai, conta
— Melhor não, tu vai ficar sem graça
— Eu? Sem graça? hahahahha vai conta
— Tá. Eu sonhei que eu vomitava na tua boca e tu virava uma casa de praia.


(Facebook, 9 de Janeiro de 2020)